domingo, outubro 12, 2003

UMA QUESTÃO DE FILOSOFIA

O Professor Veiga Simão, hoje, no programa "Directo ao Assunto", da TSF, apelou aos estudantes para que apresentem como pedra basilar das suas preocupações e reivindicações a luta pela QUALIDADE.

Acho que concordamos todos com ele e não sei bem se essa preocupação já não fará parte das exigências dos estudantes.

A falta de qualidade da Universidade Portuguesa radica fundo na filosofia de vida do Português (seja ele governante, docente, administrativo ou estudante). Radica, antes de mais, na pouca exigência que fazemos, durante a vida toda, em relação a tudo com que nos confrontamos.

Sem pretender ser exaustivo, elejo para abordar, aqui, uma vertente não despicienda porque dela (melhor: da sua falta) resultam danos importantes condicionadores, em cascata, de outros danos de maiores proporções na qualidade do ensino universitário e da escola em geral. Esta vertente é: condições de trabalho. Condições de trabalho de todas as pessoas, sem excepção, que vivem e dão vida à Universidade.

A luta pela qualidade deve passar, logo nos seus primeiros passos, pela mudança radical das condições de trabalho que são historicamente miseráveis em muitas das Faculdades e Institutos da Universidade de Lisboa (cinjo-me a esta que conheço razoavelmente).

Não pretendo teorizar sobre os ganhos que se podem obter com a melhoria das condições de trabalho, tão óbvio isso é para qualquer um que queira pensar nisso um segundo só que seja.

Dou apenas um exemplo real para que quem anda iludido sobre a qualidade existente em certas Faculdades da Universidade de Lisboa possa desiludir-se e concluir que ela (Universidade) é o espelho do País. Sempre foi o espelho do País. É o espelho da forma como o Português encara e vive a vida:

Havia um Professor Catedrático cujos únicos "bens" que a sua Universidade lhe fornecera para trabalhar foram: uma secretária (de carne e osso) para tratar do expediente, um computador, uma máquina de escrever, algumas pastas de arquivo e pouco mais. Ele que se amanhasse no reduzido espaço (acanhadinho) que outra instituição onde trabalhava lhe fornecera para se desenvencilhar da sua tarefa de director de Serviço desta instituição. Os seus assistentes reuniam-se no bar ou tinham que ir para a rua buscar outro sítio para o fazer.

Os exames eram feitos em salas com os alunos e o júri enquadrados por máquinas de café, forno micro-ondas, pratos, chávenas e talheres, sapatos usados, cobertores e colchões de campanha (dobrados e encostados aqui e ali), enfim...

Este problema de falta de condições de trabalho, como é evidente, verifica-se em outro tipo de instituições públicas (nas privadas então nem falemos – o bluff aqui costuma ser assustador).

E esta falta de condições agrava-se com o tempo pela deficiente ou inexistente manutenção do que existe. Exemplos comezinhos: quando aparece um rasgão num sofá deita-se um cobertor por cima dele e continua-se a usar o sofá cada dia mais rasgado; se cai um parafuso de uma máquina é logo substituído por um bocado de adesivo que se substituirá ad etaernum sem nunca se exigir outro parafuso. E por aí adiante até atingir proporções inimagináveis.

Diz-se com piada que, nos hospitais, por exemplo, há um curso de adesivologia que é tirado por todos os seus funcionários. Eu já vi (foi há pouco mais de um mês) grandes bocados de adesivo fazendo as vezes de uma dobradiça de uma porta guarda-vento de um corredor hospitalar (acreditem, por favor, que é verdade!).

O problema vem sempre da falta de exigência: fazem-se aquisições de instalações (edifícios) e de material e não se fazem os necessários contratos de manutenção dos materiais e dos edifícios. "Aquilo" durará o tempo que durar até cair de podre e depois logo se verá. É esta a filosofia.

Conheço quem trabalha num local onde já houve aparelhos indispensáveis no mundo de hoje (por sinal estes até já eram também indispensáveis no mundo de ontem) que se estragaram e que nunca mais foram arranjados ou substituídos. Os profissionais trabalham "no arame" sem os ditos aparelhos. Alguns desses profissionais já vêm protestando de há muito contra isso, mas o certo é que continua tudo na mesma.

Querem saber mais (e vou terminar): um dia um cirurgião foi operar à tarde. Mal se preparou para iniciar a primeira de duas operações começou a ouvir o ruído fortíssimo de um martelo pneumático que trabalhadores da construção civil estavam a usar naquele momento na sala contígua à do bloco operatório (logo ali do outro lado da parede). Indignado o cirurgião exigiu logo, sob pena de não operar as pacientes, que de imediato se extinguisse o ruído que mal permitia que as pessoas se ouvissem umas às outras na sala de operações quanto mais permitir a concentração necessária a um bom trabalho cirúrgico.

Sabem o que lhe foi dito? Querem saber? Isto:

«oh doutor, de manhã o ruído era o mesmo e os seus colegas que aqui estiveram a operar não fizeram a mínima reclamação».

Tratava-se ou não de um problema de exigência?

O certo é que as pacientes, nessa tarde, foram operadas em silêncio. Como deve sempre fazer-se.