VICISSITUDES DA CRIAÇÃO
Sobre a captura de Saddam Hussein, disse um psicólogo entrevistado pela CNN: «Saddam teve muito tempo para se suicidar, mas não teve coragem para cometer esse acto». Salmoura acrescenta: nem perante si próprio Saddam conseguiu ser digno cometendo o único acto cuja prática ainda lhe era generosamente concedida por todos: o suicídio.
A coragem, quando existe, é uma característica de pessoas íntegras e bem formadas - não era o caso de Saddam, obviamente. Com a coragem costuma confundir-se o espírito aventureiro, a crueldade, o sadismo e o masoquismo - às vezes a pura inconsciência, até - mas a coragem nada tem a ver com isso. A coragem é a resistência ao medo; é o domínio do medo, e não a ignorância do medo. A coragem pressupõe identificação do medo, resistência e luta.
A rendição sem condições e sem perspectivas de luta é o contrário de coragem: é cobardia.
Tendo-se deixado dominar pelo instinto de sobrevivência, até ao limite de ter sido capturado (com cara de rato) como um rato numa toca imunda, Saddam Hussein deu ao mundo a verdadeira imagem dos ditadores: cruéis, fanfarrões, indignos e cobardes.
Saddam teve um fim mais que merecido, talvez até, o fim mais merecido: ser confrontado, no Iraque, perante um tribunal iraquiano, com todo o rol de crimes cometidos pelo regime por si incarnado ao longo de duas décadas, sendo entregue a esse tribunal pelos seus ex-queridos amigos americanos que o amaram e armaram no passado, a quem ele pode agora, de viva voz, acusar como cúmplices dos crimes por si praticados na guerra contra o Irão.
Esse poderá ser o epílogo mais coerente de toda esta história que culminou com a invasão do Iraque por americanos e ingleses: o reencontro da criatura com o criador a quem se escapara.