sexta-feira, agosto 15, 2003

A METAMORFOSE IMPOSSÍVEL (De minhoca a réptil. De réptil a Deus)


"Uns dizem que sem esperança a vida é impossível, outros que com esperança é vazia. Para mim, que hoje não espero nem desespero, ela é um simples quadro externo, que me inclui a mim, e a que assisto como um espectáculo sem enredo, feito só para divertir os olhos."

(Fernando Pessoa)


A condição do ser humano é modificável apenas na aparência e no comportamento.

Não se conhece ainda o modo pelo qual se pode produzir um verdadeiro "Homem novo".

O que a educação, a instrução e a aquisição cultural produzem são mudanças comportamentais que levam a que as acções conscientes do ser passem a ser geridas a um outro nível do funcionamento do sistema nervoso central, fazendo com que as decisões sejam tomadas numa acção que se diria de bypass sobre a essência original do ser.

Mas a cultura e a educação não apagam a "marca de água", o "carimbo genético" de origem, pré determinados pela fusão dos gâmetas dos progenitores.

Essa marca de água, esse carimbo genético, são tão fortes que mesmo quando o ser educado e culto pensa que se metamorfoseou por completo, através de metanóias sucessivas ao longo da vida, continua a deixar transparecer, das mais variadas formas, a sua origem, a sua essência eminentemente animal.

Às vezes, por exemplo, surgem tendências segregacionistas e de exibicionismo intelectual que relevam o racismo e a xenofobia, o narcisismo e a paranóia; e se revelam no elitismo e no cabotinismo disfarçados pelo verbo cujo domínio permite mascarar o ser genuíno transformando-o, à nossa vista, num ser educado e por vezes hiperbólico.

Enquanto o primeiro, quando não gosta de alguém, é capaz de dizer «você é uma autêntica merda», o segundo di-lo à mesma só que por outras palavras: pode dizer por exemplo, «detesto vermes. A blogosfera está cheia deles e só não os indico por educação».

Basta ler os textos de certos blogueiros eruditos e bem pensantes para descobrir, através da interpretação cuidada desses textos, toda a genuinidade original que os impregna indelevelmente fazendo com que possamos dizer, por exemplo:

a) Este chafurda no alvo preferencial do Pipi, mas parece um cardeal no púlpito abençoando os fiéis na catedral;

b) Aquele martela o teclado como quem usa uma metralhadora, mas fá-lo com subtileza de linguagem, como o sniper americano que alvejava as vítimas de dentro da bagageira de um automóvel;

c) Aqueloutro é megalómano e narcisista, mas disfarça bem armando-se em consciência política da democracia.

E por aí fora.

Os leitores em geral podem "engolir" os textos com facilidade devido à pressa colocada na sua leitura e considerar que de facto:

a) Este é um cardeal irrepreensível

b) Aquele escreve como quem distribui água benta e é incapaz de matar uma mosca

c) Aqueloutro é um verdadeiro filósofo e asceta indiferente às vaidades do mundo, etc., etc.

Mas se um dia pudessem ver essas "sumidades" sem a "tampa" que as cobre – numa análise em grupo, por exemplo; atingidos por uma psicose; perseguidos por um leão em plena selva; ou na cama com a-gata-dona-da-rata-de-que-gostam – então descobririam:

a) No cardeal – o chafurdador.

b) No distribuidor de água benta e filósofo asceta – o sniper

c) No doutrinador imparcial – Napoleão Bonaparte

O ser humano – todos nós sem excepção – não passa de um saco de vaidades disfarçadas de milhentas maneiras.

No dia em que o Pipi aparecesse com a sua verdadeira identidade daria um grande contributo para a compreensão da metamorfose de que falamos.

No fim vai dar tudo ao mesmo:

Esta vida é mesmo uma verdadeira merda à escala universal.

Nota:
Eu já disse que sou minhoca. Alguém já insinuou, na blogosfera, que eu, a par de muitos outros, pertenço a outra espécie (um pouco mais evoluída que a minhoca). Não sei se devo tomar isso como um elogio ou então como falta de preparação em biologia da parte do taxinomista. Enfim… tudo coisas de bichos, entre bichos e para bichos. Coisas de humanos, em suma.