terça-feira, agosto 05, 2003

GRADECÍSSIMA MERDA

Fui bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian nos anos setenta.

No segundo ano do meu curso fui chamado à Fundação para uma entrevista com o Sr. director das bolsas para os estudantes ultramarinos.

Um senhor muito polido e muito simpático recebeu-me num amplíssimo e respeitabilíssimo gabinete onde me ofereceu o primeiro sofá verdadeiramente em pele que em que me sentei (afundei, melhor dizendo) pela primeira vez na minha vida.

Fez-me um interrogatório protocolar extremamente profissional anotando todas as minhas respostas numa folha própria previamente preparada para o efeito.

A páginas tantas do interrogatório resolvi subverter a solenidade que o acto estava tendo e disse-lhe abertamente: senhor director, penso que para além da bolsa deveria haver um subsídio para a compra de livros. É que os livros do meu curso são muito caros e não posso adquiri-los todos com o pouco dinheiro de que disponho.

Num repente resolvi mentir teatralizando uma fantasia. Então eu disse-lhe: olhe, eu, há dias, nas vésperas do exame de tal cadeira, na impossibilidade de ter o livro tal para estudar, roubei o de um colega meu, filho de ricos de Cascais – a ele não deve ter feiro diferença por aí além, e a mim fez-me um jeitão pois tive um quinze em dita cadeira –.

O homem ficou lívido. Olhou para mim com espanto, levantou-se, passeou-se pelo amplo gabinete, e disse-me confidentemente: «vou fazer de conta que não ouvi nada, pode sair e desejo-lhe muitas felicidades».

Doze anos passados sobre este episódio (sem que alguma vez eu tivesse visto o tão almejado subsídio), já licenciado e trabalhando numa instituição pública, vi um dia o "senhor director para as bolsas dos estudantes ultramarinos" feito um farrapo humano, internado num serviço de neurologia, vestido com um balandrau surrado, vivendo na maior solidão e tomando a sopa aguada das enfermarias hospitalares e à espera da chamada final para a tumba.

São momentos destes que nos levam, na nossa profissão, a "descer ao real" e a dizer: porra que esta vida não passa de uma grandecíssima merda.

Quando leio certos blogues de estilo enxofrado produzidos por autores hiperbólicos de valor intelectual infinito... penso o mesmo: não sabes, pá, mas tudo isto não passa de uma grandecíssima merda.

E aptece-me muitas vezes dizer-lhes: lê o Salmoura que ainda aprendes alguma coisa com esta minhoca antes de morreres.