quarta-feira, janeiro 28, 2004

CHORAR FÉHER OU CHORAR-ME?

Esta posta do Dicionário do Diabo trouxe-me à lembrança a primeira vez que vi uma morte quase em directo. Sabia eu que tinha encetado um caminho profissional que me haveria de obrigar a ver muitas mais mortes ao longo da vida. Cuidava que haveria de me habituar e que, como se conta dos funcionários das morgues, chegaria o dia em que indiferentemente seria capaz de pousar um prato sobre um caixão com cadáver dentro ou mesmo sobre uma mesa de autópsia e almoçar tranquilamente.

Puro engano.

Naquele dia da Primavera de 1978, menino e moço recém formado, apanhara, como fazia todas as manhãs, o comboio do Rossio para Sintra onde trabalhava então. De regresso a Lisboa, numa tarde de sol radioso e brisa suave, o comboio que nos transportava parou de repente. Vi saírem à pressa várias pessoas, e, pensando estar iminente qualquer perigo, também abandonei a carruagem. Para logo, algumas dezenas de metros atrás do comboio, se me deparar o que restava de uma mulher colhida há instantes: um monte de carne, pele, ossos, massa encefálica e cabelo, tudo misturado com bocados de tecido da roupa da infeliz criatura. No meio dessa mistura informe pude ver ainda partes dos intestinos, ainda "vivos", com os movimentos peristálticos bem evidentes.

Lembro-me do choque brutal que tudo aquilo foi para mim. Lembro-me de olhar atentamente para a berma do caminho de ferro onde uma grande quantidade de urzes floridas acenavam com os seus raminhos ao vento.

E lembro-me de ter pensado: este monte de carne que já não é nada, ainda há pouco tinha a mesma capacidade que eu estou tendo de pensar e de apreciar a beleza das flores. Porca de vida! De facto nada somos. Perante a morte não somos senão um sopro de vida num monte de células. Uma chama ténue que se apaga à menor das causas.

Passados mais de vinte anos, depois de mais de uma centena de mortes em directo, ainda não me habituei à perda da vida. Não é possível admitir a morte sem revolta (mesmo que silenciosa, sob a forma de raiva). Em boa verdade, para o Homem, a morte não é normal. É preciso que alguém esteja bem morto em qualquer parte de si para que considere a morte coisa normal.

Não é, pois, vergonha chorar a perda de Miklos Féher.

Apesar de calejado, vi imagens televisivas do féretro e quase me vieram as lágrimas aos olhos.

Não sei se quis chorar a morte de Féher ou se antecipadamente a minha. Esta a dúvida ainda não cabalmente esclarecida pelos especialistas da mente.