domingo, setembro 26, 2004

LIBERDADE DE QUEM SABE DIZER

Ao ler o anúncio do Campeonato Nacional da Língua Portuguesa, patrocinado pelo jornal "Expresso" e pelo BPI, quando vi a palavra "emular" empregue como sinónimo de "competir" pensei o mesmo que diz aqui o Rui Tavares: hoje em dia emular é cada vez mais "fazer a vez de", "fingir de", "imitar" - tudo menos "competir".

Mas está no dicionário que emular é competir, dirão alguns.


Tudo bem, está no dicionário mas o certo é que parece que deve passar a não estar.

Porque, parafraseando Rui Tavares quando diz que a gramática não é um código civil da Língua, devemos dizer que o dicionário não é a tábua dos Dez Mandamentos: o dicionário é um corpo vivo que se adapta e se renova ao longo dos tempos procurando uniformizar o léxico mas contemplando as inovações e as modificações lexicais reconhecidamente usadas pela maioria dos falantes da língua a que diz respeito.

Sobre a gramática, sempre que oiço alguém recorrer a ela de forma fundamentalista, lembro-me sempre de Fernando Pessoa quando diz:

«Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, e à maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos gerais de todo o estilo: 1) dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente se é confuso -; 2) compreender que a gramática é um instrumento e não uma lei.»

«A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo direi "Sou". Se quiser dizer que existo como uma alma separada, direi "Sou eu". Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi, "Sou-me". Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?


Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas sua expressões.»